1. A PERGUNTA ERRADA:
É muito conhecida a história do bom samaritano, contada por Jesus e registrada pelo evangelista Lucas (10.25-37). Jesus a contou para responder a pergunta "Quem é o meu próximo?". A primeira coisa que Jesus fez ao contar a parábola foi corrigir a pergunta. Ele perguntou ao mestre da lei. Ele perguntou ao mestre da lei "Qual destes três lhe parece ter sido o próximo do homem que caiu na mão de salteadores?". A resposta foi: "O que usou de misericórdia para com ele." E Jesus concluiu: "Vai, e procede tu de igual modo". O samaritano viu alguém que precisava dele e agiu em função daquela pessoa. Devo ser próximo daquele que vejo precisando de mim.
Mas a conversa com o mestre da lei tinha começado porque ele queria saber o que fazer para ter a vida eterna. Jesus lhe pediu para que resumisse a lei de Moisés. O mestre da lei acertou em cheio: "Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento e amarás o teu próximo como a ti mesmo". Jesus complementou com o lógico: "Ótimo, você já sabe, então vá e faça isso". E o mestre da lei fez a pergunta errada, "Quem é o meu próximo?", revelando que não sabia o parecia mais óbvio: a relação com o próximo. Ele sabia o que era amar a Deus de toda alma, de toda força, de todo coração, de todo entendimento, mas não sabia quem era o próximo.
Isso é um absurdo. Nenhum de nós sabe qual é o limite das nossas forças, nem a dimensão da nossa alma, do nosso coração ou do nosso entendimento. O mestre da lei achava que sabia, e que seu problema estava na segunda parte do mandamento, saber a quem deveria amar. Essa é uma confissão terrível e assustadora. Ele estava dizendo: "Eu sei o que fazer com Deus, mas não sei o que fazer com as pessoas". E isso parece ser uma absoluta contradição. Como é possível saber tudo sobre o Criador e com isso se afastar das suas criaturas?
2. A IGREJA DO MESTRE DA LEI
A situação do mestre da lei retrata bem o estado da igreja brasileira. Temos pensadores e teólogos de todos os tipos, temos ótimas escolas de teologia, mas continuamos a ser uma igreja que sabe "tudo" sobre Deus, mas não sabe a quem amar.
A melhor coisa que a igreja pode fazer, onde quer que esteja inserida para pregar o evangelho, é demonstrar o amor de Deus, marca básica do seu reino. Por que temos tanta dificuldade em fazer o pastor entender isso? É muito claro é só olhar para a criança recém-nascida. Ela sabe que a mãe a ama por causa de tudo que a mãe faz por ela. Não é um sentimento abstrato, está no toque das mãos, no colo, no alimento, no cuidado, na voz. Algo muito prático. Mas nós, pastores e nossas igrejas, não conseguimos entender isso, porque o evangelho que nós temos no Brasil é o evangelho do mestre da lei: um evangelho capaz de dizer "Eu sei o que é amar a Deus, mas não sei quem é meu próximo".
Nossa igreja é marcadamente teórica. A maior prova disso é que ela gira em torno do púlpito. O pastor brasileiro é contratado pelo que ele é capaz de fazer durante uma hora e meia, uma vez por semana.
Jeus nos ensina que devemos ser próximos daquele que precisa da nossa ajuda. Ver essa pessoa é o primeiro passo. E essa visão é deflagrada pela compaixão, que é a grande marca do samaritano. Jesus fez questão de frisar que outros dois homens - um levita e um sacerdote - também tinham visto o que estava ferido. Mas só o samaritano se compadeceu. Não é uma questão de ver com os olhos, mas sim com o coração.
A compaixão é, necessariamente, fruto da identificação. Você se compadece de alguém com quem se identifica. Ao vê-lo se imagina no lugar dele e diz "poderia ter sido comigo". Se o samaritano tivesse passado antes do moço, ele provavelmente teria sido o assaltado. Seria ele o homem à beira da estrada. A compaixão que não se coloca no lugar do outro é egoísta, porque é uma compaixão da filantropia, não da comunhão. Ela faz com que eu olhe o outro como se ele fosse um ser inferior a quem eu posso dispensar um pouco do meu tempo, dos meus recursos, das minhas possibilidades - afinal de contas não me custa nada.
Jesus fez questão de afirmar que estava falando de um samaritano. Seus ouvintes discriminavam os samaritanos considerando-os uma raça inferior e herege, um povo que não sabia nada sobre Deus e se metia a falar dele. Na parábola havia três judeus. Um deles foi assaltado e abandonado à beira do caminho. Dois outros judeus passaram de largo. Todos iguais ao mestre da lei, gente que sabe o que é amar a Deus. Então passou o samaritano que, ao contrário do mestre da lei, não sabia nada sobre Deus, mas sabia a quem amar.
Você percebe a ironia na fala de Jesus? É como se ele dissesse: "É o samaritano, lembra dele? Aquele jujeito que não sabe nada sobre Deus, aquele sujeito que você despreza. Mas ele viu e se compadeceu". Jesus chama a atenção do mestre da lei para o racismo deste. A denúncia se estende aos outros ouvintes também. "É verdade, nem você nem a sua cultura sabem a quem se deve amar, porque vocês segregam, marginalizam, o samaritano. Vocês não entendem qual foi o chamado de Abraão. Um povo que tem a vocação de ser uma bênção para todas as famílias da terra não tem a prerrogativa da segregação". Segregação por parte da igreja, povo de Deus, contradiz a sua missão, a sua razão de existir, a sua razão de ser.
Além de denunciar a ética do mestre da lei e de seus contemporâneos, Jeus mostra o que deve ser feito: você tem de sair o seu conforto e ir para o lugar do desconforto do outro. Identificar-se com ele e fazer tudo que for possível para tirá-lo dali e trazê-lo para o seu lugar de conforto. Todos esses movimentos exigirão o sacrifício de se dispor e disponibilizar tudo o que é seu, porque aquele que você viu e que precisa de você, se torna imediatamente sua propriedade. Você ajuda o outro no seu estado de desconforto, de modo a dar-lhe condições mínimas de reação, traz a pessoa ao seu estado de conforto, e leva-o a um lugar onde ele possa ser plenamente recuperado. E é exatamente esse o movimento que o samaritano faz. O pastor presbiteriano, Dídimo de Freitas, chama esse movimento de" teologia da ação social".
Uma das razões porque nós temos tantas denominações evangélicas é porque nós sabemos demais e nos dividimos por conta de detalhes. Elaboramos verdadeiros tratados sobre Deus, mas não sabemos a quem devemos amar.
A maior denúncia de Jesus na parábola do bom samaritano é: "Será mesmo que você sabe de Deus se você não sabe a quem deve amar?" A grande questão que Jesus levanta para o mestre da lei é: "Além de ter feito a pergunta errada, tem mais um detalhe que eu preciso lhe dizer: será que você sabe mesmo sobre Deus? Porque quem sabe de Deus sabe a quem deve amar, pois Deus é amor.
Da mesma forma, algo na vida da igreja brasileira está profundamente errado: uma igreja que segue a Deus, que diz conhecer a Deus e saber o que é amar a Deus, tem de saber a quem se deve amar , tem de falar menos e agir mais. Este é o grande desafio de se fazer uma missão integral no Brasil. É dificil perceber que não há óutra maneira de falar de um Deus que é amor se não for por meio de atos de amor que dão conteudo a qualquer palavra que a gente queira dizer. Quem segue um Deus assim não pode ter palavras vazias.
3. A CRIANÇA É QUEM ESTÁ À BEIRA DO CAMINHO
Palavras vazias não cabem em lugar nenhum, muito menos em uma realidade como a do Brasil. A pessoa, o ser humano à beira do caminho no Brasil é, por excelência, a criança. É o pobre de modo geral, mas dos pobres a criança sofre mais com a pobreza e está em maior número. O Estado não tem uma política que contemple, por exemplo, as necessidades de nossas criancinhas até 6 anos - 11,5 milhões delas (56 p/cento nessa faixa etária) vivem em famílias, cuja renda mensal, está abaixo de meio salário mínimo per capita por mês. Elas não tem seus direitos básicos garantidos, vivem em situação indignas e deploráveis.
O Brasil convive com crime organizado, que tem na criança seu alvo preferencial tanto na prestação de serviço quanto no consumo. Na prestação de serviço, porque o tráfico se utiliza da grande contradição que existe no Brasil, onde em muitos casos a lei apropriada existe, mas não é aplicada. Por exemplo, o estatuto da criança e do adolescente é excelente, mas até hoje, 18 anos depois de criado, ainda não foi implantado. O narcotráfico sabe que a criança é inimputável, não pode ser responsabilizada. Sendo assim, eles aliciam a criança para fazer o serviço sujo. E as possoas que querem corrigir esse estado de coisas no Brasil decidem num rasgo de "inteligência" profunda, punir a criança!
Em vez de fazermos, como sociedade, uma devassa no judiciário, na polícia e nos institutos públicos, que estão corrompidos e corroídos até a medula, decidimos que a solução é punir a criança. Isso para resolver um problema que, sem dúvida alguma, faz da criança a maior vítima.
Quem coloca a criança à margem do caminho é o próprio Estado brasileiro. Primeiro, por sua ausência, pois o Estado não está presente nas comunidades, nem na área de saúde, nem na educação, e nem na prevenção ao crime. Ele chega depois, com a força da coerção, para pegar o "pé de chinelo" e fazer bonito nos jornais.
A imprensa, por sua vez, dá voz as forças dominantes no Brasil que se integram de forma articulada para camuflar o problema, para maquiar o país. É verdade que nós temos uma economia potente, que nós somos uma das vinte nações emergentes e somos uma das mais próximas do primeiro mundo. Mas toda essa vitalidade econômica continua na mão de poucos, pois os meios de produção pertencem a poucos.
Somos a única nação moderna do mundo que não passou por uma reforma agrária. Essa situação no campo propicia o trabalho escravo, cuja maior vítima é novamente a criança. O Brasil tem uma pessoa agonizando à beira do caminho. É uma criança ou adolescente, que sofre pelo descaso do Estado, pela falta de políticas publicas, pelo modelo econômico, um modelo concentrador de riquezas e que eleva o lucro à condição de deus. O lucro é um grande inimigo da criança porque ninguém custa menos ao ser explorado do que a criança. É simples, é a lógica do sistema. E é contra isso tudo que lutamos.
Se a igreja continuar com o evangelho do mestre da lei, nós não vamos fazer diferença alguma em nosso país, porque é um evangelho que não sabe a quem se deve amar. Um evangelho que não se identifica, que não reconhece que tem alguém à beira do caminho, e que passa ao largo de crianças estiradas, crianças que representam o futuro desse país. Uma nação que não cuida bem das suas crianças é uma nação comprometida, em crise.
Qual é o nosso papel? É não desistir da igreja. A parábola do samaritano é mais atual do que a gente gostaria que fosse, e ela é destinada à igreja brasileira e para a situação desse país. Nosso papel, na igreja, é pegar nossos pastores pelo colarinho e dizer-lhes: "Venham aqui ler a parábola do samaritano de novo". Vamos ler outra vez, parece que nossa igreja não a entendeu ainda. Vamos ler até que eu, você e os que estão conosco saiamos dessa posição de conforto". Essa missão nós não podemos abandonar.
(Ariovaldo Ramos - pastor presidente do ministério JEAME)
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