terça-feira, 1 de dezembro de 2009

SEGUNDA-FEIRA



Foi exatamente nesse dia que, desempoando alfarrábios, analisando anotações do passado, lembrou-me rever um velho diário (já um tanto empalidecido pelos anos), para tentar recompor na lembrança momentos idos e vividos.Lá estava, então, uma segunda-feira de anos passados, na vida de um pastor que, à guisa de descanso, sempre optou por uma boa pescaria. Não tanto pela façanha de fisgar algum avantajado tucunaré, ou dorado, como pela oportunidade do contacto com a natureza incólume. Assim é que transcrevemos dessa página do diário, de maneira lírica e metamorfoseada, o que veio a ocorrer nesse faustoso dia.Depois de tudo arrumado, linhas, varas, anzóis, iscas e molinetes, partimos cedo, porém sem pressa, cavalgando a passo lento, conforme o ânimo dos animais. Os companheiros, trazendo cada um o seu repasto a tiracolo, cantarolavam suas inesquecíveis canções.Era uma manhã radiosa! O sol aos poucos se despontava no horizonte e um vento úmido agitava os arbustos, despertando-os do torpor da noite para a celebração do novo dia. O Rio Perdição, de águas cristalinas, já então à vista, serpenteava no vargedo, pachorrento, soberbo, reverberando os primeiros raios solares.Ao longe se ouvia, um tanto abafado, o rumor do agito que vinha de uma fazenda ali por perto: o mugido de bois, o balido de ovelhas, o relincho dos cavalos e o canto espremido de um garnisé. Os latidos persistentes de alguns cães eram, de quando em quando, permeados por assobios e gritos dos boieiros que, por certo, faziam o manejo do gado. Tudo isso se misturava ao perfume no ar, exalado pelas grevílias e hibiscos, contiguamente plantados ao longo da estrada. A brisa fresca da manhã vinha suave ao nosso encontro, como que a nos dar as boas-vindas. Cada novo cenário que descortinávamos, era como se um mundo novo se pusesse a nossa frente. Em tudo havia surpresas inimagináveis, como cenas de um misterioso espetáculo.De repente, a amplidão foi cortada por um estrídulo próximo, altíssono, inesperado. Era um pica-pau do campo (chanchã) assustado que se assomara ao pico de uma árvore ressequida. Mais adiante, pintassilgos e patativas, saindo dos seus dormitórios, punham-se a viajar em bandos, de uma parte para outra. Dos alagados, paturis levantavam-se, espavoridos, em vôos apressados, temendo nossa aproximação.Finalmente, chegamos ao lugar desejado. Abandonamos a estrada e, a duras penas, atingimos a ribanceira do rio e descemos por sua calha, banhada em dias de cheia. Aí, exatamente nesse lugar, o Ribeirão Matoso desemboca humildemente suas águas, minguado tributo oferecido ao soberano regional. Pode se ver então, também aí, na natureza, a lei do mais forte. Este, o Rio Perdição, caudaloso, implacável, suplantador,logo desfaz toda expressão do seu afluente, com a fúria de suas águas torvelinhantes. Chegando-se ao lugar preferido, amarramos os animais à sombra de uma canjarana, desvencilhamo-nos dos apetrechos e tomamos o primeiro gole de café. Logo a seguir, preparamos as linhadas, debaixo de frandosa figueira, absorvendo o ar puro da manhã, refazendo-nos com o cheiro da mata. E assim, sossegadamente, sem muita sofreguidão, iniciamos a pescaria.Tudo parecia festivo ao nosso redor. Admirados e até pasmos, pudemos ver os muitos encantos que natureza nos apresenta: a multiplicidade das formas, a policromia das folhas e flores, o gorjeio peculiar de cada pássaro, o zunzunar das abelhas no seu afã, o zumbido diversificado dos insetos na relva. Tudo isso dava-nos a impressão de uma orquestra magistral, fornecendo-nos um cenário magnífico! O salmista de Israel, observador, sensível, exclamou: "Que variedade, Senhor, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas"- Sl.104.24. O dia foi, celeremente, chegando ao seu termo. As horas passavam quase imperceptíveis. Estávamos refestelando-nos com a visão panorâmica, o espetáculo comovedor que tínhamos diante dos olhos. O movimento contínuo das águas rodopiantes do rio, fornecia-nos o sossego que buscávamos. Era paradisíaco! Esporadicamente, os curimbas vinham à tona e, em cambalhotas e revoluções, presenteavam-nos com suas acrobacias. Contudo, nossa concentração se mantinha nos peixes que biliscavam os anzóis e as mutucas que, de vez em quando, nos atacavam mais que famintas. Não obstante alguns percalços, comuns a programas dessa natureza, tal aventura poderia ser avaliada como: excêntrica, marcante, extremamente salutar para o espírito e revigorante para o corpo. À tardinha, retornamos para nossas casas, cansados, quase extenuados; porém, felizes, recompondo na memória tudo aquilo que havíamos vivenciado. No samburá estavam apenas alguns peixes pequenos; mas, as grandes emoções daquela segunda-feira se tornaram inesquecíveis. Louvado, por tudo, em todo tempo, seja o nosso Deus!
(Com esse conto, tirado da nossa própria experiência cotidiana, participamos, mais uma vez, do concurso "Talentos da Maturidade". Valeu a pena, pelo simples fato de poder retornar às coisas comuns da vida, porém, guardadas indelevelmente no recôndito profundo do coração. )    

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